terça-feira, 29 de janeiro de 2008

hino a vida

CANTIGA DO TEMPO NOVO

Deixei de olhar para quem fui
Do passado estou ausente
Às vezes mais vale a pena
Rir de tudo o que faz pena
Na alma triste da gente


Vou lançar mãos à aventura
Correr noutra direcção
Quanto mais nos lamentamos
Ainda mais presos ficamos
E nos dói o coração


A nossa vida é um mar
Com muitas marés e vagas
Não temos nada a perder
O melhor mesmo é viver
Combatendo as nossas mágoas


Tenho o mundo à minha espera
Há ilhas por descobrir
E há uma vontade nova
Um vento que se renova
Novo amor que vai surgir
Paulo Ribeiro

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Segunda que devia ser Domingo

Com o tempo perdi o sentido da palavra amor. Hoje sou um corpo. Despido pelos corpos que se cobrem pelo meu. Nada em mim é fresco. Sou o abutre que se sacia com o corpo do outro. Qualquer. Já não desespero pela espera tardia. Não lavo os dentes antes de deitar. Não acordo com a leveza dos quinze anos. Sou um velho castigado pelo adormecimento. Nada em mim e fresco. As tardes são passadas ao sol que tarda em chegar. Gostava de correr kilometros para te encontrar, de acordar de madrugada com o teu sorriso, de voar para os teus ombros, de partir os braços com o aperto do desejo, de cair aos joelhos da minha sombra fresca.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

PEQUENO TEXTO DO ESPECTACULO "O UIVO DO COIOTE"

Onde estarão agora os que já foram meninos comigo, meus companheiros de bibe-e-calção? Gostava de ir lá vê-los à nossa infância, de irmos todos, reconhecermos como nossa ainda a pureza antiga, os projectos que enterrámos, as ilusões, os actos falhados. E, com efeito, o mundo dos nossos adultos está cada vez mais triste, mais crápula, mais ratazana. É uma bicharada que vai a correr pró buraco do coval, comprometida e lassa, sem alegria, sem carácter, sem sentimentos, sem dignidade nenhuma. Não são gente: são baratas medrosas, assustadas sempre, que andam de luto por eles- mesmos e se escondem quando pressentem uma luz, a ousadia de um gesto, a virtude duma palavra. Adultos, cadáveres de jovens. Metem dó, metem nojo, tão velhinhos e tão resignados. Cagarolas. Gostaria de os tornar a ver como eram, na infância mas...

FOTO DO ESPECTACULO "COIOTE"

Texto do pregrama de mão do espectaculo COIOTE 2002

É muito gratificante para um actor escolher um texto para representar. Numa altura em que acredito em muito pouco, ou quase nada, (para ser sincero) sou um privilegiado em poder fazer, um espectáculo com textos do Pacheco, fui eu que os escolhi, agrupei, arranjei, destruí. Entrevistei o Luiz Pacheco durante 6 horas inesquecíveis, saborosas, reconfortantes, vitalícias, para esclarecer dúvidas sobre os textos que tinha seleccionado.
A opção de fazer um espectáculo ético, prende-se com a desilusão, amargura, solidão e raiva com que hoje encaro a minha, nossa vida. Pretendo com este espectáculo pensar-me, pensar-vos, mas sem grande esperança: a esperança é a primeira a morrer.
Não tenho muito mais para vos dizer, mas gostava de vos dar um conselho: se ainda não entraram na sala, vão para casa. Se já entraram é tarde de mais “amigos”.
António Revez

domingo, 6 de janeiro de 2008

Foto do espectáculo COMUNIDADE

Texto do programa de mão do espectáculo COMUNIDADE com texto do Pacheco

Encontro-me sempre com o Luiz Pacheco, em fases cruciais da minha vida. Aconteceu assim há quatro anos, acontece agora. Por mera coincidência sempre que trabalho um texto do Luiz Pacheco, estou numa encruzilhada difícil de resolver.
Esta não vai ser a ultima vez em que o meu percurso pessoal e artístico esbarra neste escritor, espero. Estou de saída (só o tempo dirá se há regresso), para outras vidas, para outra cidade, na busca desenfreada de outros sofrimentos e de outras desilusões. É a vida. E eu gosto.
A”comunidade” é um desejo antigo (felicidade de quem ainda os pode realizar), talvez propositadamente sem premeditação.
Haverá sempre um desejo de retorno a um dos maiores e mais injustiçados escritores portugueses contemporâneos.
“e fugi dos frustrados e falhados que é a malta mais castradora que existe… cagarolas… comprometidos e laços ”.

Também eu estou em fuga.

Foda-se... Morreu o grande LUIZ PACHECO

Lembras-te Fátima? era o que eu sempre te dizia, não somos nada nas mãos do acaso, e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? quem se lembrará de mim? se nem tu já te lembras de mim agora, tu, a quem tanto amei, não te lembras, e foi há tão pouco, foi ontem, parece, que te levantaste e disseste: «Ficamos amigos como dantes»...
E dizias: como dantes e era já noutro que pensavas, olhavas-me e nos teus olhos ria-se a traição, o prazer da liberdade, um desafio alegre, uma alegria provocante e desapiedada, ias a meu lado pela última vez e eu era já um estranho para ti, um fantasma a quem se concede, por caridade, uns momentos mais de companhia, algumas palavras vagas distraídas, um pouco de estima, talvez.
Reparei: o teu corpo, oh corpo do meu prazer! oh carne virgem sangrando debaixo de mim! oh meu repouso e minha febre! o teu corpo outrora tão cativo e tão submisso, ficara de repente cerimonioso e esquivo, cauteloso, afastado, com um pudor forçado no puxares a saia sobre os joelhos, como se tivesse uma grande vergonha do despudor com que se dera antes...
Dizias: como dantes e não era já nisso que pensavas, e não era já para mim que falavas, eu era uma coisa para esquecer, para deitar fora, uma coisa que se abandona caída no chão e se perde sem pena.
Dizias: «adeus» e saías da minha vida com um aperto de mão desembaraçado, quase cordial um gesto de boa camarada, como se nada tivesse havido antes, como se não tivéssemos sido tantas vezes na cama, um dentro do outro, um no outro, um-outro diferente, uma coisa sublime: Deus Criador, como os míseros humanos só ali o podem sentir e saber; um Outro que éramos nós ainda, mas tão transtornados, tão virados para fora de nós, tão esquecidos do mundo e de nós, tão eficazes, tão leais, nós boca com boca, corpo a corpo, um sexo torturando um sexo, mordendo-se devorando-se, numa febre de chegar ao fim depressa, ao esquecimento, ao repouso.
Disseste: adeus e eu odiei-te logo nesse minuto, como te odeio agora, não por ti ou pelo teu corpo que já me esqueceu noutros que vieram depois, mas porque morri ali naquela palavra, -morri entendes? -, perdi-me numa grande confusão, esqueci-me de ser eu, fiquei roubado do meu passado.
Hoje, encontrarias um outro homem; havia de rir-me do teu corpo, da sua entrega ou das suas traições, de tu me dizeres: «Vem» ou «Adeus...», ou «Não quero...».
Hoje, saberias quem fizeste com uma só palavra, conhecerias um outro homem, que é obra tua, minha segunda mãe!
Hoje, havia de rir ou chorar, era a máscara do momento; mas diria: tanto faz..., tanto me faz... Sabia-o!